Marlon Reis[1]
Um milhão de pessoas já subscreveram o formulário da Campanha Ficha Limpa realizada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (www.mcce.org.br) para apresentar ao Congresso projeto de lei de iniciativa popular em que se propõe a regulamentação do § 9º do art. 14 da Constituição Federal.
O dispositivo da Lei Fundamental expressamente autoriza a edição de lei complementar criando hipóteses de inelegibilidade que levem em consideração “a vida pregressa dos candidatos” como mecanismo de proteção da “probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato”.
A base constitucional desse preceito autoriza a superação da idéia segundo a qual o princípio da presunção de inocência estaria a impedir a edição de uma lei que considerasse suficiente uma sentença recorrível como critério para o afastamento da candidatura.
Hoje se reconhece que o princípio da não-culpabilidade tem aplicação e reflexos exclusivamente na esfera penal. Não fora assim o patrão não poderia demitir por justa causa o empregado que atentou contra sua vida. Teria que aguardar o julgamento do último recurso interposto pela defesa para só então fazê-lo, talvez 20 anos depois do crime e, quem sabe, de consumado o seu intento.
Definitivo é o exemplo dado pelo juiz federal George Marmelstein. Ele nos fala da pessoa que responde criminalmente por abuso sexual de crianças. Certamente ela não pode cumprir pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, mas a Administração Pública deve recusar sua inscrição para o concurso em que se pretende preencher a vaga de professor em uma creche. São órbitas jurídicas absolutamente distintas.
É por isso que estudiosos do porte de Celso Antônio Bandeira de Mello, Hélio Bicudo, Fábio Konder Comparato, José Jairo Gomes, Aristides Junqueira e João Baptista Herkenhoff, dentre muitos outros de igual prestígio no meio jurídico, têm afirmado a plena possibilidade de a lei complementar fixar parâmetros para as inelegibilidades que não levem em conta o princípio da presunção de inocência. O próprio Ministro da Justiça, Tarso Genro, encaminhou ao Congresso Nacional projeto de lei em cuja justificativa reconhece a inaplicabilidade desse princípio ao tema das inelegibilidades.
Diversos países já restringem a candidatura de pessoas condenadas criminalmente, ainda que estas aguardem o julgamento de recursos. Caso célebre, na Europa, é o da Espanha, que não exige o trânsito em julgado de sentenças relativas a crimes de terrorismo e rebelião para que sobrevenha a inelegibilidade do inculpado.
No nosso caso, o que a Campanha Ficha Limpa prevê é a inelegibilidade de pessoas condenadas por crimes graves – tais como estupro, tráfico de drogas, desvio de verbas e racismo – afastando-os dos pleitos até que resolvam suas pendências criminais. O projeto também confere “tratamento especial” para certa classe de brasileiros, considerando que uma denúncia criminal formalmente acolhida por um coletivo de desembargadores e ministros basta para o afastamento temporário da sua elegibilidade. Trata-se dos detentores do chamado “foro privilegiado”.
Para chegar a essa conclusão aparentemente radical, o MCCE considerou o fato de que dentre os muitos originariamente processados no âmbito do Supremo Tribunal Federal (deputados, senadores, ministros etc.), ninguém jamais foi condenado por aquela Corte de Justiça. Daí que, se o foro privilegiado é uma regalia, pois então que dela sobrevenha alguma conseqüência. Afinal, ser justo é tratar desigualmente os desiguais.
Além dessas hipóteses, o projeto prevê a inelegibilidade de mandatários que renunciaram a seus cargos para escapar de punições e de candidatos que praticaram abuso de poder, compra de votos ou qualquer outra forma de corrupção como meio de vencer o pleito.
Não há brasileiro, salvo uns poucos que se beneficiam diretamente do excessivo liberalismo da legislação atual, que não compreenda a importância e a urgência da adoção dessas medidas.
A Campanha Ficha Limpa não se baseia em argumentos moralistas, mas na identificação de patamares éticos cujo alcance pela sociedade brasileira é condição sine qua non para a reconstrução da prática política em bases republicanas.
Não se trata de fustigar o Congresso – vértice da democracia moderna –, mas, pelo contrário, de promover o seu aperfeiçoamento livrando-o de mazelas que comprometem a sua legitimidade e inspiram inaceitáveis soluções autoritárias.
Faltam ainda 300 mil assinaturas para que o projeto possa chegar ao Parlamento, atingindo o percentual de eleitores exigido pela legislação. A se tirar pela facilidade que nós do MCCE notamos em conseguir subscritores para o projeto de lei, estou certo de que em breve o Congresso terá que se deparar com a necessidade de finalmente definir normas mais claras e rigorosas para a apresentação de candidaturas em nosso País.
A mobilização da sociedade brasileira em favor de candidaturas “ficha limpa” constitui a mais significativa tentativa de promoção de uma reforma política ampla, profunda e – graças à envergadura que atingiu – plenamente alcançável.
Todos podem participar desse momento histórico. Basta acessar o site do Movimento (www.mcce.org.br), baixar o formulário e seguir as orientações ali contidas.
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Publicado originalmente na Caderno Direito & Justiça (capa) do Jornal O Estado de Minas, edição de 03 de agosto de 2004
[1] Juiz de Direito no Maranhão, presidente da Abramppe – Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais e membro do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.
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