quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Nas eleições, fontes ilícitas capturam o Estado, opina juiz

Quinta, 7 de janeiro de 2010, 13h50

Eliano Jorge


"Não é à toa que praticamente todos os grandes partidos tenham sido pilhados em flagrante, nos últimos anos, negociando apoios políticos em troca de verbas e cargos públicos. É uma prática generalizada", lamenta o presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe) e membro do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o juiz Márlon Jacinto Reis, do Maranhão.

Entrevistado por Terra Magazine, ele critica o sistema eleitoral brasileiro e propõe mudanças drásticas para banir a "mercantilização" e o "personalismo" que, acredita, degradam a política brasileira, de Norte a Sul. Resumindo, "interesses particulares sobre os interesses públicos".

Aos 40 anos, Reis não foge de análises diretas e pesadas. "Quem faz doações vultosas realmente o faz com o único propósito de influenciar as decisões futuras do governo", torna mais do que claro.

Ele maldiz principalmente o suporte a candidaturas: "As campanhas são financiadas com verbas públicas desviadas pra este fim eleitoral, de manter no poder quem está lá. O restante vem de grandes grupos interessados em contratar com o governo". E conclui: "O Estado deixa de ser Estado, é capturado por fontes ilícitas e deixa de servir ao coletivo".

Explica-se a vantagem do jogo de bancar campanhas de parlamentares: "Sai barato gastar alguns milhões na eleição de alguém que pode ter uma influência imensa na definição do orçamento, principalmente quando isso acontece em grupo".

O magistrado acredita que a dependência excessiva da economia nacional em prestar serviço ao Estado impede o desenvolvimento efetivo do País. E atribui ao Poder Judiciário uma grande parcela de responsabilidade dos problemas brasileiros. Por isso, apoia "uma reforma judiciária baseada não exclusivamente em aspectos técnicos, mas também em aspectos valorativos, de tal maneira que possa colaborar, de maneira mais eficiente, para o aprimoramento da sociedade".

Leia a entrevista.

Terra Magazine - Como o senhor avalia o sistema eleitoral brasileiro?
Márlon Reis - O sistema eleitoral brasileiro é fruto de uma tradição de concepção privatista do Estado. A figura do indivíduo prevalece sobre a coletividade, e os interesses particulares sobre os interesses públicos. Isso é demonstrado em vários aspectos da legislação. As pessoas têm a falsa impressão de que estão votando em indivíduos. Na verdade, uma série de cálculos, que formam o que se chama de quociente partidário, altera o resultado, faz com que não seja o simples somatório de votos que o faça ser eleito. A impressão dos eleitores de votar em indivíduos alimenta as relações clintelistas locais, fazendo chefes regionais terem a preponderância nos processos eleitorais. Ao invés de ideologias e bandeiras, prevalece a tensionalidade de caciques políticos locais.
O partido sabe que, por causa do quociente, é preciso fazer alianças com outros partidos pra ter o volume de votos necessários. Nessas alianças, os partidos se preocupam com a viabilidade eleitoral, e não com o conteúdo da eleição. O eleitor também não se preocupa com o conteúdo da candidatura, e sim com a personalidade do candidato. Quando bem intencionado, o eleitor procura um líder transformador. O mau intencionado negocia com o candidato, vendendo seu voto... Então, as relações são individualizadas e mercantilizadas. Os partidos negociam em termos financeiros a adesão de aliados partidários. E os candidatos também negociam com o eleitorado em troca de favores a concessão de votos. O sistema eleitoral favorece isso, ao vender a ilusão do voto no indivíduo e forçar coligações de partidos, independenemente de sua ideologia, sem critétrio, apenas por pragmatismo.

Como se deve combater a impunidade?
Quando se institui uma política baseada nisso, em personalismo e mercantilização, estamos falando da forma de acesso das pessoas ao poder. E são justamente estas pessoas que estão encarregadas de criar as normas para barrar processos de corrupção. O Brasil é carente de normas, de uma institucionalidade que, de fato, enfrente a corrupção. É razoável que seja assim, pois o próprio sistema eleitoral já favorece a eleição de pessoas que precisarão ter, inclusive durante o processo eleitoral, manejado recursos de forma ilícita. Não é à toa que praticamente todos os grandes partidos tenham sido pilhados em flagrante, nos últimos anos, negociando apoios políticos em troca de verbas e cargos públicos. Este episódio também acontece em quase todos os demais partidos. É uma prática generalizada. Durante o processo eleitoral, as alianças são negociadas com base em trocas, que são sempre financeiras, que se baseiam na concessão de oportunidades de recursos - muitas vezes públicos -, e cargos, que também têm a finalidade de movimentar recursos públicos para fins políticos. Ao partilhar cargos entre aliados, os governantes distribuem, na sua base, as portas de acesso a altos volumes de dinheiro público que vão nutrir aquela aliança, que é o que justifica a permanência nos governos. Isso acontece em todos os âmbitos da vida pública. Com uma política baseada nestas regras, fica difícil imaginar que estas mesmas pessoas, exercendo o poder, vão gerar a institucionalidade necessária para combater aquilo de que eles próprios vão precisar para garantir sua permanente eleição.

Como a sociedade civil pode participar de maneira efetiva das reações à corrupção?
Está surgindo, no Brasil, uma militância desatrelada dos partidos, mas preocupada com a política. Um exemplo disso são os 300 comitês populares do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, com um número que continua crescendo. Eram 70, há dois anos. Não pra defender partidos, mas para defender o aperfeiçoamento do sistema eleitoral como um todo. Este ano, deve haver uma forte militância por votos em candidatos de ficha limpa, independentemente da aprovação daquele projeto de lei. A Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas, a OAB e várias outras organizações estão envolvidas nesta campanha. Falarão que a política é importante. As pessoas geralmente se desencantam e consideram a política um terreno sujo, em que não pode haver a aproximação de pessoas de bem. Esse movimento social diz o contrário, que momentaneamente a política está tomada por pessoas que não deveriam estar lá.

Quem financia as campanhas e com que propósito?
As campanhas são financiadas com verbas públicas desviadas pra este fim eleitoral, de manter no poder quem está lá - é uma parte considerável. O restante vem de grandes grupos interessados em contratar com o governo. É assim no Brasil. O resto é insignificante. Aí perdemos qualquer possibilidade de planejamento. O Estado deixa de ser Estado. Nos EUA, se usa a expressão "captura de governo". Ele é capturado por fontes ilícitas e deixa de servir ao coletivo.

Até quanto se investe financeiramente por um mandato?
Eu não saberia fazer menção a números. Mas há vários exemplos conhecidos de candidaturas multimilionárias. Inclusive pra mandatos que nem mesmo fazem gerenciamento de recursos. Um deputado federal não gerencia verbas diretamente, ele influi no orçamento. Ao mesmo tempo, vários deles têm candidaturas multimilionáras porque obviamente se trata de ocupar o parlamento com o maior número de pessoas que garantirá uma destinação das verbas orçamentárias para essas empresas que financiam a campanha. Sendo assim, sai barato gastar alguns milhões na eleição de alguém que pode ter uma influência imensa na definição do orçamento, principalmente quando isso acontece em grupo. Vimos recentemente uma empresa que teve seu nome divulgado como a maior financiadora de campanha, é uma empreiteira, financia candidatos no Brasil inteiro.

O senhor fala da Camargo Corrêa?
Exatamente. Ela traz à tona algo que é generalizado, não é só ela que pratica. Todas as demais empreiteiras e todo mundo que contrata com o poder público financia muito as campanhas. Esta é a primeira chave de uma reforma política, que é impedir pessoas jurídicas de doarem. Na verdade, as empresas optam pelo caixa 2 porque não querem doar ostensivamente. Mas hoje a legislação não estabelece limites para as doações. Outro motivo para o caixa 2 é não querer doar diretamente. Porque, por exemplo, uma empresa que contrata com o poder público é proibida de doar, mas é comum que ela atue por via de outra empresa com a qual mantenha relação. É simples fazer uma transferência de recursos para um doador legal.
É curioso que tenhamos tanto caixa 2 no Brasil, quando a legislação, de regra, é tão leniente. Temos oficializada a doação por pessoas jurídicas e aceitamos o risco do controle de grande parte dos governos e do poder legislativo por estes mesmo interesses.

Como se evita isto?
O primeiro ponto de partida seria quebrar a incidência das grandes empresas que têm interesse em atuar com o poder público. Outro aspecto de uma reforma política seria quebrar este mito da individualização do voto. Os brasileiros rejeitam a ideia da lista fechada, pensando que ela oficializa o caciquismo. É o contrário. O sistema atual incentiva o voto nos caciques locais e forma um sistema de caciquismo que se reproduz em todos os âmbitos do governo. Com listas partidárias fechadas, a própria forma de composição das listas já seria objeto de discussão eleitoral. Um partido que democraticamente formasse sua lista de uma maneira mais transparente, envolvendo a comunidade neste processo, partiria com muito mais simpatia pra conquista do voto do eleitorado do que um partido em que o cacique ditou quem deve compor a lista. Mas a lista fechada é encabeçada pelos candidatos com maior potencial eleitoral; se esta lista for formada por caciques à revelia dos membros do aprtido, quem vai participar daquela campanha? Só os poucos diretamente beneficados. Com processo interno de discussão, processo justo de escolha e confiança dos seus membros, todos marcharão juntos para obter voto.

Há exemplos disso?
Na Espanha, com a morte do general Franco, se fez um processo claro pela sua redemocratização, e uma das primeiras providências adotadas foi a de listas partidárias fechadas para impedir o caciquismo. Isso funcionou muito bem. Os partidos políticos espanhóis são fortes, ideologicamente consistentes, bem distintos uns dos outros. Se quisermos ter partidos políticos fortes e uma política menos fulanizada, precisamos, sim, aceitar o desafio das listas partidárias fechadas, as pessoas votarem em partidos políticos, e não em indivíduos.

A mercantilização e a personalização, citadas pelo senhor, são componentes de uma prática difundida nacionalmente, não? Não se restringem a regiões mais carentes...
É uma prática nacional. E é uma prova de que é o sistema eleitoral que faz isso. Não é pelas características de uma região, são as decorrências lógicas da adoção de um modelo que está instituído na nossa legislação. Se a questão da compra de votos fosse relacionada à educação e à falta de recursos, teríamos isso concentrado em bolsões de pobreza, em algumas regiões do Nordeste e do Norte. Mas é uma prática absolutamente generalizada em todos o lugares. Temos casos na Serra Gaúcha e em Ribeirão Preto, lugares de altíssima renda per capta e em que o índice de desenvolvimento humano (IDH) é mais alto. A questão não é meramente econômica, é sistêmica e cultural. O sistema eleitoral atual fomenta uma cultural patrimonialista que faz se praticar generalizadamente, do Rio Grande do Sul ao Amapá, a mercantilização da política.

O senhor defende as doações por pessoas físicas. Mas, num país historicamente com dificuldades econômicas, seria viável o eleitor bancar campanhas?
Com certeza, é viável, sim. Na verdade, estamos longe de ter um país pobre. É um país empobrecido, em parte. A classe média e outros setores mais organizados economicamente poderiam perfeitamente (bancar candidaturas). Não participam hoje porque não acreditam no sistema. A doação por pessoas físicas é uma raridade. Porque o sistema não é crível, e as pessoas acreditam que o dinheiro será desviado já na campanha. Se fosse mudado o sistema, para permitir a conquista da confiança do eleitorado, não tenho dúvida de que as pessoas estariam dispostas para entrar na internet e fazer uma pequena doação para aquele partido em que mais acredita. Não precisa ser em grandes somas. Quem disse que precisamos de campanhas multimilionárias? A legislação já prevê os programas em rádio e televisão.
Nos casos dos candidatos a cargos majoritários, especialmente em eleições municipais, eles só podem utilizar segundos para aparecer com seu rosto e dizer que são candidatos. Se tivéssemos listas fechadas, o tempo seria gasto para explicar por que um partido é diferente do outro, por que votar neste e não naquele, não haveria aquela infinidade de candidaturas individuais. Só isso já favoreceria um espaço de proporção partidária e eleitoral muito grande, com tempo na televisão. Numa campanha coletiva e não difusa, todos os recursos seriam canalizados pra uma campanha unica, barateando imensamente os custos. Seria um grupo contra um outro grupo, e não centenas de candidatos, cada um sendo uma unidade econômica de campanha.

Nesta semana, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, reclamou que são tratados como crime ou conluio as doações legais para candidatos.
Não há criminalização nenhuma hoje, este é que é o problema. Não há mínima restrição, num patamar efetivamente relevante, a empresas que fazem estas doações, mesmo elas sendo contratantes do poder público. Isto, sim, deveria gerar muito mais repressão do que tem hoje. Discordo completamente. Acho que, pelo contrário, esta criminalização que ele vê não existe, infelizmente. Deveria haver uma efetiva fiscalização pra impedir. Porque estamos diante de coisas graves. Quem faz estas doações vultosas realmente o faz com o único propósito de influenciar as decisões futuras do governo. Não é legal. Na parte que é legal, defendo que seja mudado o sistema eleitoral pra que não seja. O problema é que, muitas vezes, as empresas usam brechas da legalidade para fazer coisas ilegais.

Mudanças na legislação, em 2009, facilitam as chamadas doações ocultas, que são direcionadas aos partidos. Elas não vinculam diretamente financiadores a candidatos dos partidos agraciados.
É um exemplo disso que falei. Os partidos políticos já saberão para quem vão transferir o dinheiro. Certamente não haverá uma democracia partidária que faça esse dinheiro ser pulverizado entre outros candidatos.

O senhor acha que isso reduz a transparência de doações direcionadas?
Exatamente. O que temos é uma excessiva leniência com essas práticas, e agora agravada pela própria legislação, que tornou ainda mais permitida.

A dependência excessiva da economia nacional em relação ao Estado - em prestar serviços a ele - motiva empresas a priorizarem negócios com o poder público e, a partir daí, isso as aproxima da corrupção?
Com certeza. E, por outro lado, isso atrapalha o desenvolvimento do País porque faz os olhos do empresariado se voltarem muito para contratação com o Estado. Isso impede o desenvolvimento efetivo da economia brasileira para outros patamares. É lógico que é preciso alcançar maior grau de liberdade nos negócios. E, quando se fica com um volume de dependência incrível em relação às coisas do Estado, isso tem como consequência a limitação do desenvolvimento do País.

O sistema de votação eletrônica do Brasil é o melhor do mundo, o mais prático, o que melhor funciona?
Estou convencido de que funciona bem. Tenho esta experiência como juiz eleitoral, presidindo eleições, vendo o funcionamento do sistema, acompanhando todo o processo. Trata-se de um mecanismo extremamente sério e eficaz, rápido. Ele trouxe um benefício à sociedade que não foi visto inicialmente. Tudo isso que se fala, sobre compra de votos, sobre abuso de poder econômico, em grande parte se deve ao fato de termos feito a informatização do voto. Até então, o assunto nas eleições era fraude, só falávamos de gente que teve voto e não apareceu na votação. Por isso tinha pouco espaço esta discussão de como o voto foi obtido, se com abuso ou ameaça. Chegamos a este nível de discussão porque pudemos parar de falar em fraude eleitoral.

O ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que uma das causas do aumento da corrupção é a atuação do Poder Judiciário, com "práticas arcaicas", "interpretações lenientes" e "falta de transparência" no processo decisório. O que o senhor acha disto?
Eu concordo com todas as declarações. Eu li e acho que ele está certo. Foi duro o que ele disse, mas era necessário que fosse dito em algum momento. Nós precisamos, de fato, fazer uma reforma do Judiciário que seja baseada não exclusivamente em aspectos técnicos, mas também em aspectos valorativos, de tal maneira que o Poder Judiciário possa colaborar também, de maneira mais eficiente, para o aprimoramento da sociedade, que tanto se almeja. O Judiciário tem, sim, uma parte de responsabilidade grande neste quadro atual, nestes fatos que tumultuam a vida brasileira.

A Transparência Internacional calcula que, nos países em desenvolvimento, propinas pagas a políticos e funcionários do governo somam até US$ 40 bilhões por ano. Que ações poderiam ser tomadas para reduzir isto no Brasil?
Tudo o que falamos tem a ver com isso porque estamos tratando de pensar e propor a criação de um estado mais público, mais coletivo, mais abstrato. Neste sentido, a construção de mecanismos de transparência é absolutamente fundamental. Inclusive para as pessoas saberem quais são as regras do relacionamento com o poder público, nas disputas em licitações e uma série de outras formas de relação. Deveria ser cada vez mais transparente.

Um comentário:

anilda disse...

Excelente artigo! A clareza com que se coloca a necessidade de mudanças urgentes na legislação eleitoral nos anima a continuar lutando pela mesma. Parabéns.

Anilda